quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

trecho

Estava costurando, mas não evitava perguntar-me coisas como: de que serve este tecido. De que servirá. Em quem. Seria capa de chuva, roupão, lençol, toalha de mesa ou bandeira. Ou seria ainda cortina, para cobrir a janela escancarada. Queria que fosse uma roupa de baixo um pijama uma segunda pele. Roupa permanente que libertasse do vestir-se e despir-se. Queria, um tecido sunga e sobretudo; debaixo do chuveiro e no meio do passeio público. Um manto de cerimônia e café da manhã dominical. Ou então seria menos roupa e mais bandeira, a ser carregada, mas que ainda assim servisse vez em quando como agasalho. Não precisaria, de qualquer forma, preocupar-me demais com as medidas ou costuras que pudessem no contato do corpo incomodar. Pois que roupa de retalhos costurada, sem ilusão de roupa inteira, elástica e leve. De roupa véu esvoaçante. Antes um tecido pedaço por pedaço, de couro ou borracha. Ou de lata. Pedaços lado a lado cada qual com sua textura sua porosidade, com sua aspereza, por vezes pontas, por vezes água. A agulha para o trabalho, guardo-a em mim espetada. A linha inexiste. É preciso gerá-la. E aí reside todo o trabalho, suor da costura: o criar da linha, ela mesma, despedaçada, cheia de nós e falhas. E as pontadas da agulha não deixam esquecer, que todo o tempo, por todos os lados, é preciso buscar pedaços, restos, que sirvam como retalhos. Ou ainda aqueles que, à primeira vista, desencontrados, depois de semanas, meses ou anos, servem exatos num encaixe que falta.

É preciso, pois, armazenar os que ainda não têm espaço, porém um pouco desorganizados. Pra que não fiquem, esquecidos, em suas gavetas, em seus potes de formol. Precisam estar todos dependurados, sem ordem ou classificação, pelos quartos, pela sala. Pregados às paredes, no teto, ou pelo chão. Por todos os lados devem estar, e sempre à mão, pra que o costureiro não perca tempo em buscá-los, por ordem alfabética ou qualquer outra. Ou ainda, pra que perca tempo e se perca, mas dentre eles, e por vezes surpreenda-se reencontrado, num desesquecido, meio velho, esfarrapado, que ganha novo brilho e grandeza, quando tendo outro ao seu lado.

Mas esse manto, essa bandeira, sobretudo e roupa de baixo, é e precisa ser usado - mesmo durante a costura. No tempo em que é tecido, precisa estar vestido, ainda que com buracos e falhas (sabe-se que nunca estará terminado). Ainda que não proteja dos ventos e chuvas, e das tempestades, que sempre passam e passarão, por entre os trechos que faltam.

2 comentários:

Petra Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Petra Costa disse...

E a agulha do real nas maos da fantasia
Fosse bordando ponto-a-ponto nosso dia-a-dia...dizia gil
E o dom de Ale para bordar palavras só se expande...
Belo prazer se emaranhar nelas.