quinta-feira, 15 de maio de 2008

Duas vezes real.

"...afinal, qual a diferença

entre achar e criar?"

Federico Fellini


Eu havia lhe dito certa vez, “poderia sentir saudades disso”. Mas foi antes. Na época, ela achou esquisito. Assim como já havia descrito, antes mesmo de tê-lo, a sensação dum buraco como aquele. As coisas acontecem às vezes assim dentro da nossa cabeça. Duas vezes reais. Seja pra frente, seja pra trás. Não há frente e trás. Eu já havia lhe dito que poderia sentir falta de olhar pela janela do trem e avistar aquele rio Pinheiros, lento, negro e borbulhante. E de sentir o cheiro ruim, no trem lotado de fim de tarde. E depois disso eu lia um livro Conversa na Sicília, onde pela janela havia montanhas, sentado no trem onde eu sentia o cheiro ruim e pela janela o rio Pinheiros, e então havia um grande buraco dela em mim. Naquele momento duas vezes real eu pensava, pode ser que um dia eu sinta falta disto mesmo, agora, neste trem com este cheiro ruim como um dia lhe dissera, a ela que agora naquele dia era um buraco, o qual podia ser que depois também me faltasse. Hoje sentado num outro trem lia um outro livro deste mesmo homem e nesta página estava novamente escrito duas vezes real. E então o trem era igualzinho com seu chão azulado e pequenos brilhos e a janela do trem duas vezes real. E embora do lado de fora não fosse um rio negro borbulhante e sim a parede do túnel do metrô de Berlim pensei, pode-se avistar a favela, e a luz do sol pelo vidro escuro, e o ar condicionado frio com cheiro ruim, e aquele buraco dela daquele dia, duas vezes real. O livro era Homens e Não e ela era Berta aos dez anos de idade, e eu aos dez anos de idade; ainda que aos dez anos de idade ela ainda não fosse ela e eu não eu. Eu conheço tudo sobre ela desde seu nascimento neste trem neste dia pela janela. E eu era um espectro observando aquele homem recostado no trem com um buraco duas vezes real no peito. Vejo como escorre uma lágrima pelo seu rosto. Aquela lágrima ele me deu de presente e eu sei que ele caminhará até a Paul-Robenson Strasse e encontrará a visita de Elio Vittorini, que o espera em seu quarto. Eu irei junto. Eu sempre o estou acompanhando. Eu e muitos outros espectros. Não de seu pai, mas de seus irmãos.



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