sábado, 2 de janeiro de 2010

Ainda não sei o nome disso.

Neste instante, meu passado me oprime, imperativamente.
Quis livrar-me dele como de um mendigo que pedia dinheiro,
Mas ele era esperto demais
E se travestiu de mulher –
Acolhedora e dócil.

Passou então a mover-se pelo meu corpo,
Morno, insuportavelmente;
Movediço e pantanoso,
Querendo afundar-me em sua memória,
Em sua ausência,
Como uma mulher, que falta.
“Você não se deu conta, rapaz.
Não percebeu o meu tamanho e
Se esqueceu, que eu voltaria”.
Que eu era feliz e não sabia, aquela mulher me diz,
E sorri, sem mim:
Pois ser sem mim é o ser dela,
Já que ela é não presente, não aqui;
Mas também não memória do que existiu, somente –
Sempre acrescida sim do sutil toque de tristeza,
Por não mais estar.
Mas esteve?

O caso é que, quando esteve, era outra.
A maldita.
Outra, presente, dia-a-dia, por vezes fedida,
Descontente, reclamante, perdida,
Por vezes ausente.
Mas isso também, ela diz, é de novo a minha mesma
Incapacidade vencida
De ver, já naquele tempo, o que nela existia de passado,
Quando ainda presentemente havia
O que de nós juntos viria a nascer
(sonhávamos):
Um futuro, esse, ainda mais opressivo ditador,
Que à época nos impediu,
De continuarmos sendo dois.

Pois que se explodam, ou se casem!,
A mulher-passado e o futuro que se foi,
E me deixem com meu parco hoje,
Que não me basta,
Por culpa de vocês, não dele, coitado;
Mero espaço vazio,
Sem antes, sem depois, sem ele e sem ela,
Comigo tão somente, comendo, dormindo, rindo,
No gerúndio da noite vazia,
E também daquilo que por si só virá,
Ou não virá, mas do que
Está vindo, e indo em mim, agora.
O quê?
Que eu existo só e no mundo!,
Venham a mim os mortais!,
Vamos beber uma cerveja!,
Trepar, ter filhos e fazer a revolução!,
Ou dormir simplesmente!
Ao agora nada importa,
Só a presença.

Esperança é o nome do traidor,
Mas não se pode conduzi-lo ao paredão
E metralhá-lo a nuca, pois que se trata de um daqueles mortos-vivos
Que se levantam novamente, e se alimentam dos próprios miolos.
O jeito é pregar seus pés no chão,
Amarrá-lo todo, pra que não saia voando,
Carregando todos consigo,
Em seu planar ilusório.
E para que, inversamente, não desfaleça depois,
Qual Ícaro, levando-nos todos em seu rastro,
Do mais límpido céu, às cavernas profundas,
Donde se enxerga apenas, por um buraco pequeno,
Aquelas mesmas nuvens volúveis,
Que ele nos prometera.
Ele, ser variável, de tudo e nada composto.
Preguemos seus pés no chão
E mantenhamos seus olhos
Nos olhos do mundo,
Nem no céu e nem no profundo –
Mas aqui, nessa mesa, nesse chopp,
Naquele carro, na calçada, no sorriso da moça,
No copo de café, na criança chorando,
Na mulher que rebola, no homem esfarrapado,
No rapaz que assovia, e em mim;
Ao lado e por perto
Disso tudo.

E para que não se esvaia tudo pelos ares,
Procuro manter as coisas, com a força das palavras.
Mas aí elas já não são coisas, mas
Palavras.
E por isso muito mais bonitas.
E por isso muito mais minhas.
São as coisas em mim.
É o presente bruto, nas mãos estancado,
Tornado palavra, ela que
Depois serve de documento,
De inventário daquilo que em verdade se foi –
A alquimia às avessas.
Mas a vida não se faz de palavras,
A vida se faz daquilo que elas
Inventariaram.
Ao tornar-se palavra, no entanto,
O passado perdeu a profundidade,
Perdeu a vida própria, sua revida, vaivém de eterno retorno;
E existe doravante fora de si,
Fora de mim – no mundo.
Agora já não é mais opressor distante,
Nem oprimido mesquinho,
Agora ele é;
Nasceu, está vivo,
Para que possa em outros
Reproduzir-se.
A areia movediça virou escultura de barro.
De meu pai, tornou-se meu filho,
E algo em mim se fortalece.
Esse algo, ao que parece,
Sou eu.