quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Elevado

Há algum tempo me mudei para este apartamento, que fica de frente para o viaduto. O dia inteiro carros passam na janela, muito barulhentos, sujam a sala com fuligem. O ruído, apesar de alto, por ser constante é até que suportável, de tal maneira que ao fim do dia já não me recordo mais do incômodo, e à noite os carros não podem passar pelo viaduto, o que seria preferível se pudessem, pois durante as noites é que me lembro um pouco de como era a minha vida antes de morar ali, e sempre, ao acordar e durante toda a manhã vejo-me obrigado a acostumar-me novamente ao inconfundível ruído. É curioso quando penso que moro hoje, por razões financeiras, em um desses apartamentos que, antigamente, quando passava por esse mesmo viaduto ao entardecer e ficava parado nesse mesmo trânsito, quando eu tinha um carro, sempre me detinha, olhando pelo tempo que me fosse possível, antes que a fila andasse, espiava a vida no interior dessas janelas, provavelmente dessa mesma janela, e essas vidas me pareciam como que expostas, invadidas pela cidade até seus interiores. De dentro vejo agora, no entanto, que a vida em um desses apartamentos não é nada demais, nem nada de menos. Não poderia de maneira alguma dizer que é boa, mas agora percebo: é possível se acostumar com isso rapidamente.

Um dia desses, sentado à janela, avistei, ao longe, um homem, alto e muito magro, bem aprumado, de calça de brim muito novinha, sapato de couro preto, uma camisa branca fechada até o último botão, gravata, blazer preto aberto, e, o que era, talvez propositadamente, levemente destoante, talvez porque ele tivesse algo de importante para carregar, e estivesse indo a algum lugar trabalhar ou fazer alguma coisa urgente, não estando totalmente à toa, ou talvez por ser ele um estudante, provavelmente um futuro advogado ou engenheiro, ou ainda um executivo que tentava não parecer demasiado rico, nem bem sucedido demais, ou talvez porque ali coubesse, consigo, toda a sua vida, carregada, o moço levava nas costas uma mochila. Seu rosto era limpo e, ao que parecia de longe, tinha belos olhos, olhos profundos – e andava pela mureta do viaduto. De um lado os carros passavam, do outro eram de altura uns quinze metros. Era fim de tarde, uma dessas tardes de outono em São Paulo, quando sopra uma brisa fresca, quase fria, e o sol está como que inclinado, diagonal, e se põe dentre os prédios, gerando sombras precisas, delimitadas em rubro negro. O homem andando pela mureta, larga o bastante apenas para caber um de seus pés de cada vez, forçando-o a colocar sempre um pé na frente do outro. Mas ele fazia isso com uma tal naturalidade, criando como que por acidente um leve gingado, coisa de quem passasse ali todos os dias, coisa de quem estava ali, solto: andava displicente. Ereto e malemolente. Vez em quando parava, olhava o pôr do sol, respirava fundo, dentre os carros, no meio da fumaceira toda. E foi chegando perto, vi que sorria com o canto da boca, de leve, prazenteiro, por que não? Apesar do barulho, apesar da poluição, dos prédios, talvez até como que por conta disso: por conta disso: o moço andando por dentro da cidade; o moço e a cidade. Amavam-se? Estavam enamorados, talvez. Não é possível que não conseguisse ver tudo aquilo à sua volta, a sujeira o pó a fuligem buzinas xingamentos? Caminhava. E foi-se chegando, passou pela minha janela, olhando aqui pra dentro com aquela curiosidade de ver uma vida tão de perto, por tão pouco tempo. A intimidade fugaz dos viadutos. Olhou, reparou em mim, e enfim abriu a boca pra dizer umas três palavras, que infelizmente não ouvi. Por causa dos carros, eu acho. Por causa dos carros, que passavam cada vez mais e mais rápido, os carros, que não queriam que eu ouvisse. Mas era um recado: o moço me conhecia. Sorrindo de leve. Sorrindo com o canto da boca. E se foi. Os carros passando, cada vez mais depressa e em maior número, uma infinidade deles, infinitas luzes, até que sumiu o moço, numa curva do viaduto, e se pôs o sol, em segundos, anoiteceu, e se foram os carros. Se foram todos, restei eu, e o silêncio.

Eu. Apoiado no batente, antecipava os sofrimentos do dia seguinte, quando acordaria novamente com o barulho dos mesmos carros, que seriam talvez outros, mas passando sempre da mesma forma na mesma hora no mesmo lugar, e já não tenho tempo sequer pra ficar, como já fiz em outros momentos, na janela, tentando reconhecer as pessoas, aquelas, as mesmas que passam todos os dias por ali, nos mesmos horários, imaginar as suas vidas, o que é também lembrar da minha, achar aquelas que vão para os seus trabalhos, os quais adivinho pelos seus trajes, pela marca de seus carros, e até, quem sabe, eu poderia reconhecer aquela mesma jaqueta marrom que o tal sujeito usa faz três dias, e reparar que o filho da moça mal-humorada melhorou daquela gripe – logo me lembro que, como se diz, já não tenho tempo pra essas bobagens.

2 comentários:

Unknown disse...

...sabe, estou escrevendo de Porto Alegre. O que não significa que vida passe a ter um sentido mais amplo. Embora eu descubra o prazer de caminhar até a beira do rio Guaíba e perceber que nem todods os Horizontes me foram roubados. Você está certo quando diz preferir que o elevado não se fechasse, pois o silêncio de uma noite tranquila pode ser muito mais aterrorizante. E é!
Mas como disse estou escrevendo praticamente à beira do rio Guaíba, cujo Sol, imponente em sua retirada, me diz com ares aristocráticos que ali - entre ele e o meu olhar - o homem não se meterá jamais! E eu o escuto com humildade de servo e com desconfiança de servo.
Alê,
assisti ontem A Missão, do òi nóis...não vou te dar notícias do que vi. Mas te digo que no tudo quanto escreves e pensas, não estás sozinho, não estamos. Eu que sei pouco, lhe garanto que nossas breves conversas indicavam um caminho. Se for possível, releia o texto e pense em Galloudec... Não em Debuisson... podemos ser brancos e morrer na jamaica?
Escreve Alê! escreve mais até suas palavras saírem andando correndo, por conta própia e saltarem nas bocas dos atores de nosso grupo de teatro e atirarem contra nosso peito (e o da multidão) a mesma bala de canhão que recebi do Heiner Muller ontem. Olha só que podemos (se não parar os carros), abrir de vez o elvado e desviar a rota do viaduto pra que entrem em nossos apartamentos de uma vez por todas. Olha só que as vezes é uma mera questão de mudar a placa de trânsito e provocar a rota contrária - carros passando pela janela, não mais em frente...

abraços
clayton

Pensamentos Inconvenientes disse...

Eita vidinha mais ou menos irmão! - cenas de uma vida urbana que parece não distinguir os homens de seus carros.
O ir e vir das pessoas; tantas vidas solitárias convivendo no mesmo espaço tempo. Milhões de cidadões sozinhos sempre rodeados de gente.