terça-feira, 13 de janeiro de 2015

trecho do livro "O FILHO" (título provisório)*

* desenvolvido com o apoio do Proac, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo - E aí, Bruninho? "E aí, Bruninho"??? O quê? Deve fazer dezoito ou vinte anos que eu não vejo o sujeito, ele segura a minha mão e de repente fala "e aí, Bruninho" com a maior naturalidade, como se a gente tivesse se visto ontem ou na semana passada no máximo!! Como se não tivessem passado mais ou menos dezoito anos, como se fosse totalmente corriqueiro e cotidiano me encontrar aqui, e pudéssemos agora continuar a mesma conversa que começamos quase vinte anos atrás!... Quando eu vim para o balcão, avistei ele na outra extremidade, e na mesma hora me caiu na cabeça todo aquele passado, e junto veio a sensação deprimente de olhar para ele, e ver que eu precisaria conversar inevitavelmente. E então ele se aproximou, se encostou do meu lado e começou a falar, como se estivesse continuando uma conversa corriqueira com uma pessoa que ele vê todos os dias!!! Mas não é nem um pouco corriqueiro! Não é cotidiano, e aliás é muito ruim para mim ter que lembrar dessas coisas agora. É muito ruim encontrar com ele, principalmente porque ele está exatamente igual, e lidando com as coisas como se elas fossem iguais, e é como se fosse um pedaço do passado que de repente pulou para o presente, gerando uma desorganização total do tempo em mim. O sujeito que trabalha no bar coloca a garrafa de cerveja na minha frente, no balcão, e o copo de pinga ao lado. Sinto o rosto pulsar na região do soco. - ...você não está lembrando de mim, Bruninho? Ele me olha sorrindo de um jeito que é muito triste. É o mesmo sorriso de antes. Nós temos algum segredo em comum, algo que é só nosso. É isso que o sorriso dele fica me dizendo. Como antes. Ele sempre teve essa forma de sorrir. Sempre teve exatamente essa forma de dividir supostos segredos. Há algo de insuportável aqui. Nesse bar, na minha cara, no meu estômago. Eu não devia ter vindo para cá. Encho o copo de cerveja e tomo meio copo em um gole. Sinto como o líquido desce pela minha garganta mas não me refresca mais, só passa pela garganta e cai no estômago, estufa o estômago para frente. - Claro que lembro, Rato. Ele olha para mim e continua sorrindo como antes. O sorriso é igual. Ele sorri como se estivéssemos dividindo um segredo. Como se estivéssemos dividindo algo que só é nosso. Ele sempre teve esse jeito de sorrir e de estar no mundo, que fica o tempo todo criando esse tipo de relação com as pessoas. Ele cria essa cumplicidade vaga o tempo todo, de maneira desnecessária e incômoda. Se virou e jogou a franja para trás. Ele jogou a franja, exatamente como fazia há dezoito anos atrás! O Rato, Ratinho, tinha uma espécie de aura que ele carregava, e que tinha a ver com a maneira como ele sorria, com a franja que ele jogava para trás, e outros trejeitos do tipo. Ele manteve os trejeitos, mas não tem mais aura nenhuma. Só ficaram os gestos vazios, como se fossem imitações do que ele era antigamente. Está tudo igual, tudo, o mesmo tipo de calça meio larga, a camiseta colada no corpo, só que a pele dele está gasta, os olhos ficaram fundos. Os traços do rosto também estão mais angulosos. Ele joga a franja novamente para trás, da forma como ele fazia há dezoito anos, e aponta o sujeito gordo apoiado no balcão, atrás dele. - Estou com o meu velho aí... O pai dele é um paquiderme de barriga dura, sentado em um banquinho que proporcionalmente à área da sua bunda se tornou um graveto. Ele segura o copo de cerveja como se fosse uma xicarazinha de café, no meio dos dedos. A mão dele é um tipo de casco. Ergo o copo de cerveja na direção dele, sem resposta. - ...esse aqui, pai, é o Bruninho... Das antigas!... - Opa – o sujeito disse isso como se estivesse com a boca cheia, como se estivesse mastigando um ovo cozido inteiro, e voltou a olhar para frente. Ele está olhando a televisão, onde um cara de terno está falando sobre um prisioneiro ou algo do tipo. - Oi. Respondo e bebo o resto da cerveja no copo. Encho de novo. O meu rosto continua pulsando, e a cerveja age diretamente nas minhas pálpebras. Sinto como elas ficam mais pesadas a cada copo. O Ratinho volta a olhar para mim de novo criando a cumplicidade estranha a que ele recorre o tempo todo, nesse caso, ao que parece em relação ao seu pai. Ele está dividindo alguma coisa comigo! Supostamente nós compartilhamos algum tipo de opinião sobre o pai dele! Ele fica sorrindo desse jeito e com isso quer grudar em mim e não largar mais, criar vínculos indissolúveis, mesmo que eles não existam!! Na verdade eles não existem mesmo. Eles ficaram no passado. Hoje em dia somos totalmente diferentes. Ele é um rato pegajoso e velho, sem perspectivas, e eu sou um cara bem sucedido, cheio de saúde, começando a galgar posições profissionalmente. Ficamos alguns instantes em silêncio, e eu bebo mais um copo. A cerveja promete me aliviar em alguma coisa, mas não cumpre a sua promessa. Ela só piora a situação, faz o meu estômago estufar mais e mais, até explodir. O Rato volta a olhar para mim. - ...mas e como está o Pedro? Você tem visto o pessoal?, o Olho, o Lubé?... "Olho". Eu não gostaria de estar lembrando dessas coisas. O nome do menino era "olho". Era um menino pequeno e briguento, fazia lutas, etc. Ele era o mais idiota, talvez, de certa forma o mais esperto também, esse "olho"... Eu evidentemente nunca mais encontrei essas pessoas, se é que eles ainda estão vivos. Mas talvez o Rato queira ficar perguntando das pessoas que conhecíamos no passado, coisas assim, querendo saber o que eu estou fazendo agora, se tenho visto aquela ou essa pessoa!... Eu não quero fazer nada disso, Rato. Não vou te responder isso, não quero saber dessas coisas! Na verdade eu não quero saber de nada, eu nem queria ter que lembrar que você existe, mas de repente você apareceu aqui na minha frente e está me obrigando a ficar em contato com você, em contato com esse pedaço do passado que pulou para o presente sem nenhuma modificação, só com o mofo, o pó, o ressecamento por estar velho... Você está mofando, Rato! Está mofando, com cheiro de guardado! He, he... É isso mesmo. Mas eu não vou ficar agora atualizando as nossas vidas, não vou ficar te dando essas informações, mesmo que você me peça... Não vou! Esse sujeito, esse Rato me traz junto com ele um monte de sensações que agora estão no meu corpo, junto com o meu abdômen estufado. Sol quente, terreno baldio, avenida, essas coisas. Ele vem junto com um monte de memórias misturadas, tudo meio seco e cimentado. Mas agora me ocorre que talvez o único jeito de me livrar disso seja expurgá-las por meio da fala. É isso que você quer Rato? Então toma: - ...onde você morava mesmo? - Eu? Lá na... Na esquina ali, sabe?... Eu ainda moro lá... - ...e você tinha um cachorro, não era? - ...cachorro? Ah, é!... ...você lembra! Era o Jack. - Jack? - Era. Um boxer assim, branco... - Isso. Um boxer. Você ficava levando ele para lá e para cá. Eu gostava daquele cachorro. Era bom, ter um cachorro por perto... - ...depois ele morreu, faz uns... Quanto tempo faz?... Hein, pai?... Quanto? Ele deu um tapa no peito do pai, que vira o rosto lentamente e olha para nós. - O quê? - O Jack morreu faz o quê, cinco anos?... - Que cinco! Dez anos. - Não!, que dez? - ...não foi em 1999 que você... Fez aquela viagem para... Para a praia, lá... - Para a Bahia? - É. Porto Seguro... - Foi. 99 para 2000 - Então! - O que é que tem. - Foi depois disso, que ele morreu. No ano seguinte. Faz mais de dez! O pai olha para a televisão e não vira o rosto para conversar. Funcionou. Falar nas coisas é o melhor modo de acabar com elas. Esse pedaço de família deprimente vai agora ficar discutindo sobre a data da morte do animal. Eles gostam disso. De discutir por muito tempo sobre informações desse tipo. Eles com certeza adoram esse tipo de coisa, datas, números, escalações, acontecimentos, entes familiares distantes! Já deu para ver que eles são esse tipo de pai e filho. Adoram tudo o que eles puderem ficar falando, todas as palavras que eles possam ficar articulando com as suas bocas, desde que não sirvam para nada e não tenham o mínimo sentido! Eles adoram passar o tempo dizendo essas palavras e usando os seus cérebros para lembrar dessas coisas pequenas e absolutamente sem nenhum significado. - ...mas eu lembro direitinho da mãe, ela já estava com o cabelo pintado... E eu lembro também que... Ah, é! Ele morreu e eu já tinha saído da firma lá do... - Da COFAB? - É, eu já tinha saído de lá... - Então. Mas você saiu quando? - Foi em... - Faz dez anos, já! - Não!... É... Oito... Nove, faz nove anos... - Então! É o que eu disse... - É, pode ser... O pai continua olhando a televisão. Agora o Rato parou e pegou o seu copo de cerveja. Ele deu um gole e se encostou no balcão, como quem está disposto a ficar aqui mais cinquenta horas. Que desgraça. Eles pelo jeito vêm sempre aqui. São alcóolatras. O pai é alcóolatra e para não dar trabalho enfia o filho no meio. Quero inflar mais o meu estômago. Estou me sentindo um animal duro e gordo como o pai do Rato. Bebo o restante do copo e esvazio a garrafa enchendo o copo de novo. Procuro o garçom com o olhar. Ergo a garrafa. Ele faz que sim com a cabeça. Estou começando a compartilhar da linguagem utilizada neste ambiente. - ...mas fala aí, Bruninho, o que você tem feito? Chega aqui que eu vou fumar. O Rato me chamou para sair do bar junto com ele. Eu agora vou ter que ficar falando com esse conhecido porque há dezoito anos a gente teve algum tipo de contato por conta de interesses comuns, como drogas, bebidas, etc, só que esses interesses não existem mais, então não tem nenhuma razão para a gente ficar fazendo isso!... Me retiro do bar atrás dele e vejo como ele continua andando da mesma forma que antes, como se estivesse sendo observado por mulheres. Só que dezoito anos depois, envelhecido e triste. Carrego meu copo de cerveja e tomo mais um gole no caminho. A minha pança estufada está se tornando motivo de orgulho para mim. Ele para na calçada e acende um cigarro. Bebo mais um gole. Eu olho para o lado. Ele percebeu que eu não estou mais aguentando ficar aqui na frente dele. Que eu não quero nenhum tipo de contato. Que eu não vou me submeter à cumplicidade que ele quer criar. Penso em ir para dentro, mas prefiro ficar aqui e alimentar a raiva que estou sentindo dele. Ele dá uma tragada e olha para mim de cima a baixo. - Você está diferente. - Ah, é? - É lógico! - Lógico? Por quê? - Ah, não sei direito Bruninho... Você está mais velho!... - Ah, bom. Isso é mesmo verdade. Eu estou mais velho, devo estar uns... Dezoito anos mais velho!? - É isso?... Dezoito? Nossa, como passa!... - Como passa o tempo, né? Passa rápido, a gente nem vê, e tal. Essas coisas. - É... He, he. Acho que você está mais sério, né?... Ainda está no movimento? Não deve estar né?... "No movimento". Ele perguntou se eu ainda "estou no movimento" e deu uma tragada no cigarro. Ele olha para mim enquanto solta a fumaça para cima. Isso é uma forma de ele reafirmar, "sim, estou querendo engatar com você nessa conversa, nessa mesma conversa de dezoito anos atrás, sim, eu estou fazendo as mesmas coisas, sou exatamente a mesma pessoa!..." Bebo o restante da cerveja que está no meu copo. Sinto a barriga estufar. A cerveja me dá mais raiva e mais paciência concomitantemente. Vejo o garçom colocar outra garrafa no lugar da vazia, sobre o galpão. Quero ir lá e beber mais. O Rato agora está sorrindo como se tivéssemos ainda mais um segredo em comum. Ele gostou muito de trazer à tona esse assunto, referente às drogas. De certa forma ele se orgulha de dividir comigo essas lembranças, das drogas, etc, etc. São lembranças incômodas de alguma forma. Tem alguma coisa ali que não é boa. Eu sorrio também, de vergonha e para disfarçar o desprezo. - É mesmo?... Nossa, com essa cara, imagina!... Ninguém dá nada... - Que movimento, Rato? - No movimento, se você ainda tasca unzinho!... - Se eu uso drogas? - Oi? - Você está querendo saber se eu ainda uso drogas? Quer dizer, ilícitas, drogas ilícitas? Ele para por um instante e fica quieto olhando para mim com uma seriedade que eu nunca vi antes na cara dele. Ele traga e aponta para a minha cara com o cigarro.... - ...é. Pode ser, isso!... - Não. Eu não tenho mais usado entorpecentes desse tipo, drogas ilícitas, e tal. E você? Ele dá a última tragada no cigarro. - Eu? Bom, eu... Mas por que você quer saber? Ele joga a bituca no chão e esmaga com o pé. Ele olha para o chão e depois volta a olhar para mim, com algum tipo de apreensão. - É, está certo, eu não quero saber. Não precisa responder. Voltamos para dentro do bar e eu vejo o copo de cachaça ao lado da garrafa cheia de cerveja. Pego o copo de cachaça, e viro inteiro. É muita cachaça. Quase não consigo engolir. Sinto como ela quase não entra e preciso empurrar para baixo à força. O líquido quente passa por mim deixando um rasto de calor e um certo mal-estar. Brota um tanto de saliva na minha boca, quando o Rato me olha sorrindo, de certa forma reconciliado, como se dissesse, "eu te conheço há muito tempo, você continua igual, ainda gosta de virar uma cachaça, nós dois sabemos disso, esse é o nosso segredo...", etc. Mas eu não compartilho nada disso. Sinto a minha boca salivar e me aproximo dele. Eu não compartilho do prazer dele em lembrar dessas coisas. Quando lembro dessas coisas, como ele está me obrigando a fazer, não sinto um prazer, uma vontade de compartilhar isso. Eu sinto nojo, vergonha e medo. Mas tem alguma coisa nessas memórias. Depois que o Rato apareceu na minha frente alguma coisa pulou do passado para agora e invevitavelmente as cenas colam em mim e passaram agora a me atormentar. Saquinhos de maconha, o gosto do pó, o cheiro da cola. Tem alguma coisa nesses momentos que de repente passou a me causar curiosidade e medo. Chego perto dele e falo bem baixo, para o pai dele não ouvir, como se estivéssemos na frente do portão da casa dele, dezoito anos atrás. - ...você lembra daquela vez, que a gente arranjou um pote de benzina... Ele faz que sim com o mesmo sorriso, muito feliz de poder conversar sobre as memórias, e olha para o pai, que não está escutando. Ele está preocupado que o pai não escute. Ele precisa esconder esse tipo de coisa do pai dele. - ...a gente ia subindo a rua, sabe?... Ia lá para perto da casa onde eu morava na época, cheirando nas nossas camisetas mesmo, mandando bala!... Cheirando, cheirando, até a cabeça explodir de tanta benzina, Rato!! Lembra?... Que bizarro!... E quando a gente cheirava era meio... Era como se a rua, os prédios, o mundo todo gritasse no nosso ouvido e pulsasse, e a gente ria, não sei de quê, acho que como uma espécie de impulso físico automático, a gente ria, no meio da rua, caia no chão de rir, ralava o joelho no asfalto, e tal, lembra?!... - É... A gente apavorava a rua!... Dava umas baforadas fortes, aí ficava tudo brilhando, e faz aquele barulho, uéuéuéué... - Isso!... E a gente colocava mais benzina, aspirava mais, gargalhava no meio da rua!... Aí eu lembro que de repente eu tinha acabado de cheirar, uma vez, e vejo um carro de polícia descendo a rua. Logo depois, mais dois atrás. Eu lembro de querer que o efeito passasse, de querer muito, de estar desesperado a ponto de rezar para as coisas pararem de gritar no meu ouvido, e todo o mundo foi para o canto da rua andando devagar... Eu estava rezando mesmo, tipo Ave Maria... Aí eles passaram, e a gente relaxou. O Quim logo na sequência já deu outra cheirada. Só que depois os camburões subiram a rua de volta, encontraram o Quim dessa vez rindo no meio da rua, perdendo o equilíbrio de tanto rir, bem na frente dos dois camburões!!... - Lembro, lembro!... A gente tentou avisar o Quim, eu segurei ele e falei direitinho tudo, mas ele estava muito doidão e... - Isso, essa vez mesmo! É... Isso. Essa vez aí!... ...é dessa vez que eu estou falando... Estou... querendo pensar uma coisa... Encho o copo de cerveja e bebo mais. Estou me sentindo completamente tonto e mole. A minha boca está mole. As pernas também. A cachaça caiu no meu estômago e me deixou mole e ao mesmo tempo empolgado. - ...então, Rato, mas... Eu tenho uma... Uma pergunta, entendeu? Esse negócio de ficar lembrando dessas coisas, sabe?... Bom, na verdade... É muito ruim isso... Mas eu estou, agora, nesse momento, eu estou me perguntando o seguinte. Vou te perguntar também: por quê? - Por quê? - Isso, por que, por que!! Por que a gente fazia essas coisas, entendeu?? - O quê? Cheirar benzina?... - É. Por exemplo... Por exemplo isso! Cheirar benzina, litros de benzina, cair no chão de rir... Ficar com a cabeça quase estourando de tanta benzina no meio da rua, levar geral de policiais!... Essas coisas... - ...porque... Para curtir, né?... Porque a gente curtia, ficava doidão... Percebo apoiei todo o peso do corpo no balcão do bar. Sinto a minha cabeça oscilar de um lado para o outro mas acho que é uma sensação interna. Estou bêbado. Falando com esse sujeito, o Rato. Lembrando do passado. Tem algo de perigoso nisso tudo. O nome dele é Rato, e ele fica falando essas coisas aqui na minha frente, dizendo essas palavras sem sentido. Sinto o meu corpo mole e a minha cabeça está querendo cair para os lados. Meu braço está totalmente apoiado e a minha raiva aumenta junto com a minha paciência e a minha vontade de ficar aqui por mais tempo falando com o Rato. Bebo mais um gole de cerveja. - Não, Rato, você não está entendendo! Não é assim, "para curtir a vida"... Por exemplo, a gente não ia, sei lá, jogar futebol, andar de bicicleta, xavecar as vizinhas... A gente ia cheirar benzina, cola, tomar ácido, lírio, chá de cogumelo, entendeu??... Por quê? - Eu jogava bola. Jogava direto. Ainda jogo! - Ainda joga bola? É mesmo? - Jogo. - Ainda fica loucão de vez em quando também? Eu vejo ele ficando quieto por alguns instantes, e sinto o meu corpo bambear para os lados. - He, he... É... não, agora é só mais... Uma cervejinha... - Mas então, por que, por que a gente fazia essas coisas, você acha? - Eu acho que era para curtir. A gente aproveitava mesmo, sem limites... - Mas eu não acho que era uma questão de aproveitar! A pessoa pega e fica cheirando benzina na própria camiseta, gargalhando no meio da rua usa todos os tipos de drogas, sendo pego pela polícia!... Como assim?? - Assim. É divertido. A gente curtia mesmo, sem dó. - Divertido. Ah, que merda. Eu bufei isso para fora da boca. Sinto como o meu bafo está quente e olho para o chão por alguns instantes. - Ô... Rato. É o seguinte. Cara. Não. Não é assim!... Entendeu? Agora mesmo. Estou bêbado. Virei uma cachaça de uma vez. Estou tonto, quase vomitando. Para quê? - Pra curtir! - Não!! Não é pra curtir, Rato! Não é pra isso!! Bati minha mão no balcão e agora o bar inteiro está girando. Paro um pouco e olho para o chão. Me apoio totalmente no balcão e procuro me concentrar. Olho para o outro lado. Vejo que o pai do Rato está olhando para mim. Por que esse rinoceronte gordo está me olhando? - Você sabia que eu já fui mestre de obras de prédio de mais de vinte andares? Ele de repente me disse isso, e está me olhando como se fosse um desafio. Pelo jeito ele gosta de afirmar esse tipo de coisa para as pessoas. - O quê? Ele chega com a cara mais perto de mim. Vejo o couro duro da cara dele. Ele me mostra a sua cara, o seu maxilar e me exibe o orgulho de forma ainda mais invasiva e incômoda. - Eu! Fui mestre de obras de um prédio de vinte e dois andares. Sinto o cheiro de álcool que emana dele. Está bêbado há dias. - Hum... ...não... Não sabia... Nossa... - Então. Mais de vinte! Cento e trinta e sete homens trabalhando... Imagina! Você sabe como é ser mestre de obras cento e quarenta neguinhos? - Nã... Não... Tomo mais um gole de cerveja. O bar está ameaçando girar novamente mas eu me concentro para que ele fique no seu lugar, e me esforço para mantê-lo parado e escutar o que o paquiderme gordo me fala. - Então. É difícil. Por que. Está tudo pronto, né? A planta, está tudo pronto, os ferros vêm prontos, já cortados e tudo, as vigas. Até aí tudo bem. Mas se o sujeito, o pedreiro, mete um tijolo torto, uma parede mal feita, ou mesmo uma viga dessas que não seja encaixada direito, sabe o que é? É risco! Risco para o prédio inteiro! Mesmo se for só um tijolinho, dependendo!... Aí, você tem que botar ordem, olhar tudo, tudo, o tempo todo!... Mas eu sou bom nisso. - É... Legal... - Sou. Sou bom. - Que bom. O trabalho... É bom, então? - É. - ...e... E da dinheiro?... - Então. Dá. Dá sim... - É, dá sim, dá um bom dinheiro, né pai? O Ratinho apoiou a resposta do pai. - E não dá? A gente tem casa, carro, televisão, geladeira, freezer, o Juninho fez faculdade, tudo pago, já! Não é bom? Ele de repente perguntou isso aí para mim. O bar continua parado em volta de nós e eu vejo a cara redonda e dura do pai do Rato. Ele me observa e quer que eu responda alguma coisa. O pai pega o copo de cerveja. - Sabe o prédio da windows? É um prédio que tem o windows lá, é grande, foi esse aí que eu falei... Eu que fiz. Eu conheço as partes internas do prédio, eu que construí entendeu? Sabe como é? - Sei... Legal mesmo... Ele continua me olhando. Ele quer que eu diga alguma coisa sobre o que ele me contou. Mas eu não tenho nada para dizer sobre isso! - Acho legal... ...você construiu o prédio, e tal. Entendi! - Eu passo na frente do prédio, e eu sei, eu sei que fui que fiz aquilo, entendeu? Eu sei como o prédio foi feito, cada cantinho dele... - Ah, tá. Mas, e daí? Você fez o prédio, e tal, foi o mestre de obras, mas e daí? Que diferença isso faz? - Faz diferença, que antes não tinha o prédio lá, depois, ele está lá, e fui eu que fiz!... - Hum. Para mim não faz diferença. Antes não tinha o prédio, depois tinha o prédio, se não fosse você ia ser outro. Mas tudo bem! - ...é, pai, e o pior é que o senhor nem pode entrar lá!... Se você for lá, hoje, tem uma empresa lá, aquilo é propriedade deles, você nem pode entrar! Você mesmo construiu e nem pode entrar!... O Ratinho agora começou a discordar do pai e discutir com ele. Pelo jeito eles também fazem isso muito. Discutem essas coisas desse tipo por muito tempo. Coisas sem nenhuma importância, esse tipo de coisa inútil e sem sentido. Eles ficam muito tempo discutindo. Ele diz que o pai nem pode entrar, etc. - ...mas eu nem quero! E o que é que eu ia fazer lá!? - ...só que foi você que construiu o prédio, e agora nem pode entrar nele! Entendeu? - Mas é lógico que eu não posso entrar. Eu construí. O prédio não é meu, Júnior! Não tem nada a ver! - Mas então, o que é "meu". O que é isso?? O prédio não é "seu"? É bem mais "seu" do que do dono do prédio! Foi você que fez, pai! É errado isso! É do cara, por quê? - Por que é dele, Júnior. Aliás, que porra que você está falando? Por que eu ia querer ir lá? Eu não quero ir lá! O Rato olha para mim. - Tá vendo?!... - O quê? - Está vendo como é? Ele não pode nem... - Mas é lógico que eu não posso Júnior! O que é que você queria? Que besta! Eu me irrito e respondo. - É, é lógico. Na verdade eu nem sei porque é que vocês dois estão tão preocupados com isso tudo. Essas coisas não importam em nada. Sempre vai ter alguém que faz os prédios, alguém que destrói, etc, etc. Eu dou de ombros. Movo os ombros para cima e viro para o lado para pegar o copo de cerveja. Gostei muito de ter dado de ombros agora. Faço isso de novo. Foda-se. He, he. Isso está certo. É a resposta correta para ele: não importa! Isso tudo aí que você falou, para mim, foda-se... Bebo mais cerveja. Eles poderiam ficar o resto do dia conversando sobre esse assunto. O Rato acha que o pai foi injustiçado. Foda-se. Dou de ombros de novo. O pai olha para mim por algum tempo. Ele está pensando, pelo jeito. Está raciocinando algumas coisas. E me olha com metade do olho aberto. - ...mas então o que é importante? - O quê? Ele está olhando para mim com as pálpebras na metade dos olhos. O Rato também. Eles se uniram. O bar parou um pouco de rodar e parece ter ficado estável. - Pra você, você falou que não importa, não é importante, o prédio, quem faz o prédio, etc... O que é importante? - ...para mim? - É. Para você. - Hum... Não sei, é... Para mim, é... Acho que... Eu olho para a cara dele. É uma cara grande. Agora dá para ver que os olhos aparentemente mortos estão acordados atrás do corpanzil de rinoceronte, mesmo cobertos pelas pálpebras. Ele me perguntou de repente o que é importante, e ficou me olhando com uma espertezazinha. Tem os olhos vivos ali. O Ratinho olha também para mim sem expressão nenhuma. De repente desapareceu da cara dele o sorriso. Ele não tem nenhum segredo em comum comigo, nesse momento. - ...nada. O pai dele continua olhando para mim da mesma forma, com os olhinhos vivos no meio da carona redonda e dura de bicho velho. - ...nada é importante de verdade. Não sei por que eu disse isso. Não pensei para dizer isso. Ele me forçou a dizer isso. O Ratinho não moveu nem um músculo. É como se eu não tivesse dito nada. Não quero ter dito isso. - ...ou tudo... Mas tudo mesmo! Para mim, é assim... Ou nada, ou tudo, é importante. Sabe?... Não sei por que eu disse isso também. Essas palavras não se encaixam totalmente bem em mim. Ele segue olhando para mim, com os olhos vivos no meio do corpo duro. Os olhos se movem e me olham mais de perto. - ...o que você fez no nariz? - Ah, isso?... Foi... O Ratinho volta a sorrir como antes, e se torna meu cúmplice em menos de um segundo. - Se meteu em briga. - Ah, é? Saiu na porrada? O Ratinho aponta o meu nariz para o pai, e os dois comentam. Sinto minhas pálpebras querendo fechar. - É. O cara meteu um cruzado na cara dele... O Ratinho veio até mim. Ele chega com a mão bem perto da minha cara. Eu olho para ele. O que ele quer com isso? - ...ó. Olha aqui, pegou bem aqui, ó, está vendo? Foi um cruzado mesmo... Ele simula o soco, fecha a mão e me dá um soco em câmera lenta, até encostar a mão fechada na minha cara, bem na região que ainda está pulsando um pouco mais que o resto. - Foi bem isso... Um cruzado, direitinho, hein pai? Eles dão pequenas risadas entre si. Eu retiro a mão dele da minha cara, e dou um passo para o lado. O pai volta a falar comigo. - E quem era o cara? - ...ah, um cara aí... Um bosta aí... - ...e você também meteu a mão na cara dele?... - ...bom, eu... Não consegui... Eu... Eu resolvi sair de lá, não ia servir para nada, eu só ia me estragar mais... - ...você levou uma porrada e saiu fora? - É. Eu achei melhor. O pai vira para o outro lado, e fica com a cara parada na direção da televisão do bar. Ele se recolhe de novo para dentro do seu casco de rinoceronte, e fica ali, parado. O Rato dá um tapinha no meu ombro. - Quer que a gente vá lá? - Oi? - Lá? Onde o cara te... - Ah, a gente?... Na... Ah, não!... Não é desse jeito que você está pensando. - Vamos, vamos lá Bruninho. A gente desce a mão no cara... - ...não, não... Não é bem assim. - Vamos lá, pô! Eu te ajudo nessa!... Eu tô afim! Encho o meu copo de novo. Não sei por que eu não disse que foi o meu irmão. Pelo jeito eu não quis que eles soubessem disso. - É melhor não. Vou beber mais esse e vou embora. Tomo o copo de cerveja em um gole só e olho para a cara do Rato. A pele da cara dele ficou mesmo mais grossa. Ele está igual, exatamente igual, mas a pele engrossou. Se tornou um tipo de couro. Antes o aspecto da cara dele era bem mais liso e suave. Talvez isso também tenha acontecido comigo. Passo a mão no meu rosto. Os pelos continuam crescendo constantemente aqui. As coisas estão se movendo dentro de mim e brotando do meu corpo. Tudo no meu corpo está constantemente vivo e em movimento, e isso é muito trabalhoso e cansativo, se você pensa por um instante. - Até mais, Rato. Seguro a mão dele e sinto o tapa que ele dá no meu ombro esquerdo. - Até. A gente se vê. Passo pelo pai dele, ergo a mão mas ele não responde. Ao que parece não reparou que eu passei aqui. Está olhando a televisão. Vejo o sujeito de terno na tela e me dirijo ao caixa. Olho ainda uma vez para o rinoceronte que é o pai dele. O mestre de obras nem ergueu a sua pata dianteira quando viu que eu estava saindo. O sujeito no caixa entrega um cigarro para a mulher que está na minha frente. O bar está cheio de gente falando alto. Sinto o meu corpo mole. Pago agora a minha parte e depois vou caminhar até o apartamento. Há algo de terrível nesse retorno.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Ainda não sei o nome disso.

Neste instante, meu passado me oprime, imperativamente.
Quis livrar-me dele como de um mendigo que pedia dinheiro,
Mas ele era esperto demais
E se travestiu de mulher –
Acolhedora e dócil.

Passou então a mover-se pelo meu corpo,
Morno, insuportavelmente;
Movediço e pantanoso,
Querendo afundar-me em sua memória,
Em sua ausência,
Como uma mulher, que falta.
“Você não se deu conta, rapaz.
Não percebeu o meu tamanho e
Se esqueceu, que eu voltaria”.
Que eu era feliz e não sabia, aquela mulher me diz,
E sorri, sem mim:
Pois ser sem mim é o ser dela,
Já que ela é não presente, não aqui;
Mas também não memória do que existiu, somente –
Sempre acrescida sim do sutil toque de tristeza,
Por não mais estar.
Mas esteve?

O caso é que, quando esteve, era outra.
A maldita.
Outra, presente, dia-a-dia, por vezes fedida,
Descontente, reclamante, perdida,
Por vezes ausente.
Mas isso também, ela diz, é de novo a minha mesma
Incapacidade vencida
De ver, já naquele tempo, o que nela existia de passado,
Quando ainda presentemente havia
O que de nós juntos viria a nascer
(sonhávamos):
Um futuro, esse, ainda mais opressivo ditador,
Que à época nos impediu,
De continuarmos sendo dois.

Pois que se explodam, ou se casem!,
A mulher-passado e o futuro que se foi,
E me deixem com meu parco hoje,
Que não me basta,
Por culpa de vocês, não dele, coitado;
Mero espaço vazio,
Sem antes, sem depois, sem ele e sem ela,
Comigo tão somente, comendo, dormindo, rindo,
No gerúndio da noite vazia,
E também daquilo que por si só virá,
Ou não virá, mas do que
Está vindo, e indo em mim, agora.
O quê?
Que eu existo só e no mundo!,
Venham a mim os mortais!,
Vamos beber uma cerveja!,
Trepar, ter filhos e fazer a revolução!,
Ou dormir simplesmente!
Ao agora nada importa,
Só a presença.

Esperança é o nome do traidor,
Mas não se pode conduzi-lo ao paredão
E metralhá-lo a nuca, pois que se trata de um daqueles mortos-vivos
Que se levantam novamente, e se alimentam dos próprios miolos.
O jeito é pregar seus pés no chão,
Amarrá-lo todo, pra que não saia voando,
Carregando todos consigo,
Em seu planar ilusório.
E para que, inversamente, não desfaleça depois,
Qual Ícaro, levando-nos todos em seu rastro,
Do mais límpido céu, às cavernas profundas,
Donde se enxerga apenas, por um buraco pequeno,
Aquelas mesmas nuvens volúveis,
Que ele nos prometera.
Ele, ser variável, de tudo e nada composto.
Preguemos seus pés no chão
E mantenhamos seus olhos
Nos olhos do mundo,
Nem no céu e nem no profundo –
Mas aqui, nessa mesa, nesse chopp,
Naquele carro, na calçada, no sorriso da moça,
No copo de café, na criança chorando,
Na mulher que rebola, no homem esfarrapado,
No rapaz que assovia, e em mim;
Ao lado e por perto
Disso tudo.

E para que não se esvaia tudo pelos ares,
Procuro manter as coisas, com a força das palavras.
Mas aí elas já não são coisas, mas
Palavras.
E por isso muito mais bonitas.
E por isso muito mais minhas.
São as coisas em mim.
É o presente bruto, nas mãos estancado,
Tornado palavra, ela que
Depois serve de documento,
De inventário daquilo que em verdade se foi –
A alquimia às avessas.
Mas a vida não se faz de palavras,
A vida se faz daquilo que elas
Inventariaram.
Ao tornar-se palavra, no entanto,
O passado perdeu a profundidade,
Perdeu a vida própria, sua revida, vaivém de eterno retorno;
E existe doravante fora de si,
Fora de mim – no mundo.
Agora já não é mais opressor distante,
Nem oprimido mesquinho,
Agora ele é;
Nasceu, está vivo,
Para que possa em outros
Reproduzir-se.
A areia movediça virou escultura de barro.
De meu pai, tornou-se meu filho,
E algo em mim se fortalece.
Esse algo, ao que parece,
Sou eu.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

FETICHISMO DA FORMA MERCADORIA

I.
Olhava de longe,
Nem via.
Me sacudiu,
Reparei.

A parte exposta eram mistérios.
Mantinha escondidos os muito profundos
Rasos sentimentos,

Que naufragavam;
Gotas no espelho d´água que
Se quer poça,
Se quer mar profundo,
E é oceano,
É rosas boiando,
É tudo e nada:
É o que se quer que seja.

Quis que fosse, o que não poderia deixar de querer:

Quis que não fosse.

II.
Isso, antes de reparar no imenso aparato
De ferro pesado, espelhos, refletores
A deslocarem os olhares, a refletirem os brilhos,
Dela, que, pareceu-me, nem mais existiria.
Sumira faz tempo, e, pelo que se via,
Isto já não fazia a menor diferença.

Mas onde estaria, então?
Sumida de vez, extinta?
Ou quiçá escondida ainda? Por detrás de tudo,
Ainda que magra e sem forças, ou até
Forte sim, e cheia de lágrimas, cheia de sangue,
Quando alcançada fosse, se fosse,
Se não fosse de fato todo o aparato,
Os refletores inteiros, e as luzes também,
E os olhos – os meus e os dela.

III.
- Então os arrancarei!
Não, não adianta, meu bem;
Meu amor, não venha não, que
Nada deixou de ser o que era.
Não venha não, não vá,
Não vai sair por aí desarvorado só por causa disso.
E então ela era um sorriso de reflexos,
E uns olhos de saciedade, e
Uns ferrolhos de máquinas, e
Umas lâmpadas elétricas em perspectiva
Também eram ela.

E estávamos contemplando isso tudo, todo o maquinário,
Enquanto cada engrenagem era
Eu, e era ela, e
Será que isso é possível, enfim,
O fim do que nela há de não-eu?

Talvez sim, mas ainda assim,
Isso não quer dizer que tenhamos chegado
Ao para além das quintessências;
À massa disforme, ao insípido do mundo;
A ela – interiormente.

Nem que tenhamos enfim alcançado
A aridez de seus ossos,
A crueldade dos seus órgãos
A sua carne indivisa e morna,
E viva, viva, viva.

Isso não significa, meu bem,
Que tenhamos arrancado
Detrás das cortinas de Oz o mágico,
Estraçalhado suas carnes,
Deixado-lhe saltar fora os órgãos,
Arrancado-lhe os olhos,
Experimentado-lhe o sangue
(E então estaríamos sentados,
Em volta os pedaços dele,
Cansados, calmos, saciados)
Não, não, não.
Então, volte pro seu lugar, velho!,
A insipidez já não me sacia.
Agora eu a quero livre,
Libertada da busca eterna dela por detrás dela em mim.

III.
E aí, quiçá pudessem as Twin Towers
Ser um feixe de luz,
E a Microsoft se sublimasse então
Em partículas infinitas, e mesmo
Bill Gates se rarefizesse enfim completamente,
Num holograma, num vácuo.

E a World Wide Web não seria mais que
Uma realidade possível mais ainda, e

No entanto é preciso estraçalhar ainda muita gente real,
Pra que isso tudo possa ser sonhado.



.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Os cabelos da Nona, o sol no chão.

Ou será que há somente os antes e os depois – só que são feitos de agoras inflacionados. O que não existe então é o tal do durante. Pensava enquanto cozinhava batatas e o chão da cozinha refletia o sol que era como o do chão da cozinha onde a Nona cozinhava batatas para o purê. Agora ele esperava batatas para um purê que tentaria refazer como o da Nona e pensava sobre os cabelos dela, como é que eram sempre iguais. Esperando para amassar as batatas com seus cabelos desiguais e a água fervia com as batatas e o sol no chão. Depois tocou a campainha. Agora vou até a porta, mas antes preciso despedir-me dos cabelos da Nona e do sol e do purê para encontrar um outro ser humano que me espera. Eu gostaria de poder ficar um pouco mais aqui vendo essa fumaça esperando as batatas, mas há um outro ser humano na porta. Eu a estava esperando e algum tempo atrás reclamava do seu atraso; agora já me havia acostumado. Não consegui despedir-me da Nona e a campainha de novo Nona vamos comigo até a porta. Não gosto disso porque depois ela vai embora sem avisar e quando vejo não está mais e estou eu e um outro ser humano enfiados no durante. De novo a campainha. Avisto-a no portão e agora a apresento à Nona e agora não há durante com este ser humano pois ela é também tudo o mais como o vapor da panela e o sol no chão e agora ela sorriu e posso sentir-me nela como dentro daquela cozinha como esperando as batatas da Nona que pode ficar por aqui por que já são conhecidas e têm do que conversar, as duas. Ela o abraça e ele sente o cheiro do seu perfume que é como um cheiro que existe em algum lugar em algum canto de alguma casa onde vivera. Ela não quer parar de abraçá-lo e nem ele, e ela sente as mãos dele que a apertam como as mãos de um outro homem que ela lhe apresenta neste momento, mas os dois já são amigos de longa data. Ela lhe beija o pescoço que tem o cheiro duma rua por onde já passara, mas da qual já não mais se recordava.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Memórias 1



Um pedaço de papel em cima da mesinha da sala, ao lado do corrimão dourado na luminosidade fresca que escorria do alto do vitral escada abaixo. Escrito Tercimina. Ela tinha um pano na cabeça, um sorriso de dentes desorganizados e era a empregada. Tercimina porque terceira menina ela disse. A Nona de visita reparou que o T de Tercimina não se sabia se era T ou se era F. Não dá nem pra saber ela falou gozando um pouco da Tercimina. Que disse no quintal: na Alemanha é que dão valor aos pretos. Lá uma preta como eu vale muito. Foi o que ela falou limpando merda do cachorro me lembro. A Nona às vezes falava Que Horror com pronúncia cênica. Depois havia a Aracy que era maior e mais gorda e ria sem conter-se. Ninguém não se incomodava não. Ela falava. Nada que seu Hugo faz presta. E ria e eu ria. Ela gostava de forró e contava ontem peguei um moço um mocinho no forró. E ria. Ela veio do Piauí. E ria risos escancarados, assim como os risos do Justino bêbado: pra entrar em cena tem que ser malandro. Ele é ator, fez EAD. Acho que agora estava num bico de coveiro ao que parece enterrando gente não sei onde em Guarulhos. Uma vez passei na frente da casa dele e ele na mureta me chamou do outro lado da rua cheguei lá. Esse é meu cachorro. Ele é chique, só come fora. Tava lá o cachorro revirando uns lixos. Com um sorriso saltando pra fora da boca e bafo de cachaça matinal ele disse meio molengo teu pai é o único que confia em mim. Em cena ele também era assim, só que iluminado - detrás da mesa de luz um homem de dois metros de altura, Cacá, o iluminador; fino e com bigodes, ele parecia saber o que estava acontecendo, ainda que quase cego, de tão míope. Às vezes eles estavam ensaiando e até eu já tinha decorado o texto. Ensaiavam por exemplo na casa de um, que era uma casa onde o teto só não caía porque ficava apoiado em um toco de madeira entre o teto e o armário casas Bahia vagabundo de metal da parede mal pintada da cozinha.


quinta-feira, 15 de maio de 2008

Duas vezes real.

"...afinal, qual a diferença

entre achar e criar?"

Federico Fellini


Eu havia lhe dito certa vez, “poderia sentir saudades disso”. Mas foi antes. Na época, ela achou esquisito. Assim como já havia descrito, antes mesmo de tê-lo, a sensação dum buraco como aquele. As coisas acontecem às vezes assim dentro da nossa cabeça. Duas vezes reais. Seja pra frente, seja pra trás. Não há frente e trás. Eu já havia lhe dito que poderia sentir falta de olhar pela janela do trem e avistar aquele rio Pinheiros, lento, negro e borbulhante. E de sentir o cheiro ruim, no trem lotado de fim de tarde. E depois disso eu lia um livro Conversa na Sicília, onde pela janela havia montanhas, sentado no trem onde eu sentia o cheiro ruim e pela janela o rio Pinheiros, e então havia um grande buraco dela em mim. Naquele momento duas vezes real eu pensava, pode ser que um dia eu sinta falta disto mesmo, agora, neste trem com este cheiro ruim como um dia lhe dissera, a ela que agora naquele dia era um buraco, o qual podia ser que depois também me faltasse. Hoje sentado num outro trem lia um outro livro deste mesmo homem e nesta página estava novamente escrito duas vezes real. E então o trem era igualzinho com seu chão azulado e pequenos brilhos e a janela do trem duas vezes real. E embora do lado de fora não fosse um rio negro borbulhante e sim a parede do túnel do metrô de Berlim pensei, pode-se avistar a favela, e a luz do sol pelo vidro escuro, e o ar condicionado frio com cheiro ruim, e aquele buraco dela daquele dia, duas vezes real. O livro era Homens e Não e ela era Berta aos dez anos de idade, e eu aos dez anos de idade; ainda que aos dez anos de idade ela ainda não fosse ela e eu não eu. Eu conheço tudo sobre ela desde seu nascimento neste trem neste dia pela janela. E eu era um espectro observando aquele homem recostado no trem com um buraco duas vezes real no peito. Vejo como escorre uma lágrima pelo seu rosto. Aquela lágrima ele me deu de presente e eu sei que ele caminhará até a Paul-Robenson Strasse e encontrará a visita de Elio Vittorini, que o espera em seu quarto. Eu irei junto. Eu sempre o estou acompanhando. Eu e muitos outros espectros. Não de seu pai, mas de seus irmãos.



sexta-feira, 4 de abril de 2008

Pierrot enfiado no chão.



Na ponta dos pés todo esticado
Equilibrara-se Pierrot. Tentava alcançar;
No rosto a luz prateada duma lâmpada
Fria, que era como a lua.
Depois, sentou-se.
Alguém viu nele uma tristeza.

(Você desapaixonou?)

Vozes e tambores e
Gotas de céu em
Águas barrentas
Ouviam-se no horizonte.

E o sorriso fácil de Pierrot;
Feito de retinas, feito
De dentes, de lábios -
Feito de terra.

Ele disse,

Você sabia que ela
É imensa, como um palco
Vazio?

Eu sou Pierrot com sangue nas veias e pés fincados na lua.